UM ANO SEM PEPE: A LENDA QUE NãO SE APAGA

No mesmo dia em que nos despedimos de Diogo Jota e do irmão André, a vida - tantas vezes dura, tantas vezes imprevisível - lembra-nos que, apesar de tudo, continua. O mundo não pára. Não deixa de girar... Faz hoje exatamente um ano que Pepe se despediu dos relvados como jogador, encerrando uma das carreiras mais marcantes do futebol português. Neste cruzamento entre a dor e a memória, o legado de Pepe - construído com resiliência, paixão e uma entrega sem limites - ergue-se como símbolo de continuidade, de superação e de tudo aquilo que merece ser vivido… antes que seja tarde.

Há um ano sem vermos aquele olhar feroz, a garra indomável e a alma de quem nunca desistia. Um ano sem um dos melhores defesas da história do futebol mundial. E sim, sem receio das palavras: um dos maiores de sempre. No futebol, há quem jogue, quem represente... e há quem encarne um clube, uma seleção, um país. Pepe foi - e continuará a ser - tudo isso. Nasceu no Brasil, mas tornou-se português de coração e alma. Envergou a camisola das quinas com orgulho, entrega e uma coragem que, durante duas décadas, fizeram dele um exemplo e uma referência.

A 26 de fevereiro de 1983, nasceu em Maceió, no Brasil, Kepler Laveran de Lima Ferreira. Em criança, tinha medo do escuro - um receio que rapidamente superou. Desde cedo, assumia responsabilidades em casa e, na rua, entregava-se às brincadeiras da infância: soltar papagaios de papel, jogar ao pião, andar de bicicleta (BMX) e, claro, jogar futebol. Mesmo em tenra idade, já assumia o compromisso de nunca desistir e revelava traços marcantes da sua personalidade: determinação, garra e uma aversão absoluta à derrota - fosse num jogo, fosse numa simples brincadeira. Quando via futebol na televisão, dizia com convicção à família: um dia vão ver-me ali, a jogar.

Foi em casa que aprendeu os valores que o moldaram: o respeito pelos mais velhos e por todas as pessoas, a valorização da família, o trato respeitoso e educado com todos, a lealdade e a verdade em tudo o que fazia. Princípios incutidos desde sempre - e que nunca abandonou. Apesar de tudo o que conquistou, Pepe manteve-se inalterável no que realmente importa. Sempre atento, disponível, carinhoso e protetor com a esposa, filhos, sogra e sogro, irmãs, pais, sobrinhos, e também com os cunhados. Porque, mais do que um grande jogador, Pepe sempre foi - e é - um grande ser humano.

Este artigo é, para mim, particularmente especial. Conheço o Pepe e a sua família há mais de 20 anos. Durante esse tempo, passei horas e horas em conversas semanais com o Sr. Anael, pai do Pepe - momentos que guardo com enorme carinho. Jamais esquecerei a amizade, o respeito, a generosidade e os valores que sempre me transmitiu.

A primeira camisola de Portugal que recebeu fui eu que lha ofereci, através do pai. Na dedicatória que escrevi, disse-lhe que sabia que um dia iria vestir aquela camisola e que tinha a certeza de que teria muito sucesso. O tempo deu-me razão.

O contacto com a família mantém-se até hoje, com a mesma proximidade e afeto. Sei que há quem não goste do Pepe. Eu, pelo contrário, admiro-o profundamente. Para mim, ele é um exemplo e uma referência humana. Uma referência num mundo tantas vezes duro, complexo e desigual. E é exatamente por isso que esta história merece ser contada.

Em 2001, a partida do Brasil foi dolorosa, mas ficou a esperança de que o jovem Pepe iria lutar por concretizar o seu sonho. Quando chegou a Portugal, vindo do Brasil, tinha o equivalente a cinco euros no bolso. Teve de se dirigir ao SEF, uma vez que viajou sozinho com apenas 18 anos, e era necessário que o clube (Marítimo) enviasse um fax a autorizar a sua entrada no país.

Com o pouco dinheiro que trazia, enfrentou uma escolha difícil: ou comprava um cartão telefónico para ligar à mãe e dizer que estava bem, ou comprava uma sandes. Optou por tranquilizar a mãe. Ligou-lhe… e ficou sem dinheiro.

Sem dinheiro, sem nada para comer e com mais de 20 horas de espera pela frente - chegou por volta das 6h da manhã e o voo seguinte, com destino à Madeira, era apenas às 23h - decidiu andar pelo aeroporto, à procura de algo que lhe valesse o tempo. Acabou por entrar na Pans & Company. Vagueou pelo espaço e aproximou-se de um funcionário para lhe perguntar, com humildade: Não tem nada que eu possa comer? O funcionário respondeu que sim, que havia de tudo. Pepe explicou: Mas eu não tenho dinheiro. O homem olhou para ele, saiu por instantes e voltou com uma bandeja com uma baguete. Toma, come, vá… eu ofereço-te, disse-lhe. Aquele gesto simples mudou-lhe a vida. A partir desse momento, Pepe sentiu dentro de si uma vontade enorme de também ajudar os outros. Foi um episódio que o marcou profundamente. Aquele homem não fazia ideia de quem ele era. E Pepe, até hoje, lamenta não saber quem foi. Mas nunca esqueceu esse gesto - que o acompanhou para o resto da vida.

Já na Madeira, o contacto com a família era feito através de um telefone público. Ligava para casa numa data específica, uma vez por mês, mas era sempre muito rápido, porque as chamadas eram caras. Nesse dia, todos ficavam à espera da chamada. Tinham de estar presentes, porque era através dela que sabiam que ele estava bem - mesmo que mal desse para conversar. A chamada resumia-se, muitas vezes, a pedir a bênção aos pais e a ouvir todos, em uníssono, dizer: nós amamos-te. E, de repente, a ligação caía. Nesse momento, a família chorava junta.

Começou discretamente, ao serviço do Marítimo. Foi Nelo Vingada quem o lançou em jogos oficiais, mas foi Manuel Cajuda quem apostou nele como titular indiscutível, ao lado do holandês Mitchel Van der Gaag. Cajuda viu o que poucos ainda vislumbravam: um central com antecipação, físico, leitura tática e uma vontade inquebrantável de vencer. A partir daí, o mundo não voltou a ser o mesmo para Pepe.

Seguiu-se o FC Porto. Quando foi ao escritório do clube, nas Antas, Pinto da Costa abriu a cortina, apontou para o Estádio do Dragão e disse: aquela ali vai ser a tua casa, Pepe. Bem-vindo. Espero que sejas muito feliz no FC Porto. A tua felicidade será a nossa felicidade. Cresceu na Invicta, conquistou títulos e tornou-se num pilar defensivo. Depois, podia ter ido para Londres mas deu o salto para o Real Madrid, onde viveu uma das fases mais brilhantes da história do clube: três Ligas dos Campeões, três Ligas espanholas, várias Supertaças e Mundiais de Clubes. Ao lado de Sérgio Ramos, formou uma das duplas centrais mais temidas de sempre. A sua atitude competitiva, antecipação, jogo aéreo e espírito de sacrifício tornaram-no imprescindível. Desafiou os limites e foi recompensado.

Após uma década gloriosa em Madrid, Pepe rumou à Turquia, para representar o Besiktas, em 2017. A sua chegada foi recebida com entusiasmo pelos adeptos, que rapidamente se identificaram com a sua garra, liderança e entrega. Apesar da passagem curta, deixou marca pela forma como liderou dentro de campo e pelo respeito que conquistou fora dele. Foi exemplo de profissionalismo e carinho pela cultura turca.

Em janeiro de 2019, regressou ao FC Porto. Aos 36 anos, muitos duvidavam que pudesse competir ao mais alto nível, mas Pepe voltou a afirmar-se como pilar da defesa, sob o comando de Sérgio Conceição. Trouxe liderança, maturidade e uma mentalidade vencedora. Contribuiu para títulos, formou os mais jovens e reforçou ainda mais o seu estatuto de ídolo. Provou que a idade é apenas um número quando se joga com o coração e inteligência. A última vez que vestiu a camisola dos dragões foi em Rio Maior, a 21 de abril, num triunfo sobre o Casa Pia (2-1). O último troféu foi a Taça de Portugal, em maio, frente ao Sporting - mesmo sem ter jogado. Ao todo, foram 895 jogos entre clubes e Seleção Nacional. Marcou 51 golos na carreira, o último a 13 de dezembro, na Liga dos Campeões frente ao Shakhtar Donetsk, tornando-se o jogador mais velho a marcar na prova.

Na Seleção Nacional, o legado é eterno. Campeão da Europa em 2016, com exibição monumental na final frente à França, e vencedor da Liga das Nações em 2019. Somou 141 internacionalizações - tornando-se no terceiro jogador com mais jogos pela equipa das quinas só atrás de João Moutinho e Cristiano Ronaldo. Participou em quatro Mundiais e cinco Europeus. Em 2024, tornou-se o jogador mais velho de sempre a atuar numa fase final do Europeu, despedindo-se frente à França, aos 41 anos - sempre competitivo, sempre Pepe.

Mas Pepe foi mais do que um defesa temido. Foi um líder silencioso, um companheiro leal e um símbolo de superação. Vindo de origens humildes, ultrapassou críticas, preconceitos e lesões para chegar ao topo - e lá permaneceu durante quase duas décadas. Foi amado por uns, odiado por outros, mas respeitado por todos.

Zinédine Zidane dizia: Se queremos vencer, precisamos de jogadores como o Pepe. Com ele em campo, sabíamos que podíamos ir à guerra.

Cristiano Ronaldo descreveu-o como o parceiro ideal para quem quer ganhar: intenso, leal, vencedor. Iker Casillas afirmou que foi um dos melhores centrais com quem jogou. Deschamps reconheceu: foi um dos grandes culpados pela nossa derrota em 2016. Anulou todos os nossos movimentos ofensivos.

Sérgio Conceição, no momento do adeus, resumiu: É o melhor profissional que já treinei. Abdicou de muitos prazeres da vida. Foi um superatleta, uma máquina competitiva, um grande homem.

O futebol perdeu um guerreiro. E os adeptos, um símbolo. Um ano depois, continua a fazer falta aquele grito de alma antes de entrar em campo, aquele carrinho salvador aos 93 minutos, aquele exemplo durante 90 minutos, aquela forma de viver o jogo com o coração ao rubro.

Pepe não era apenas um jogador. Era uma força da natureza. Uma tempestade que sabia quando atacar e quando proteger. Um homem de princípios, que nunca esqueceu de onde veio - e que sempre soube para onde queria ir.

Neste primeiro ano sem ele em campo, resta-nos a memória. E que memória. Pepe deixou uma marca indelével. A sua ausência é uma presença constante em todos os que amam o futebol.

Agora, sem as chuteiras calçadas, é tempo de se dedicar à família - de retribuir com presença todo o apoio que, durante tantos anos, sentiu e deu. É tempo de saborear a vida de um modo que antes não era possível, de explorar outros interesses, de abraçar novos projetos com a mesma paixão, disciplina e entrega com que sempre vestiu cada camisola. O futebol seguirá o seu caminho, mas Pepe é único. O seu nome está gravado na eternidade.

Perante os trágicos acontecimentos desta semana em que a vida voltou a recordar-nos da sua fragilidade, da efemeridade da nossa existência e da forma como tudo pode mudar num instante. Não podemos adiar gestos, palavras, afetos. Não podemos deixar para amanhã aquilo que verdadeiramente importa. Acreditamos - de forma quase ingénua - que haverá sempre tempo mas pode não haver amanhã. Tem de ser hoje. E por isso...

Obrigado, Pepe. Obrigado simplesmente por tudo.

2025-07-05T21:48:41Z